Por
A mais B, a técnica da notícia
Nilson
Lage [*]
Resenha
COMASSETTO, Leandro Ramires. As razões
do título e do lead: uma abordagem cognitiva da estrutura
da notícia, dissertação de mestrado. Florianópolis, UFSC,
2001, 99 páginas.
Quase tudo que se publica no Brasil
sobre jornalismo trata de grandes veículos nacionais, redes poderosas
que levam seu discurso a grandes concentrações urbanas – as praças
de São Paulo capital, São Paulo II (a “Califórnia brasileira”),
Rio de Janeiro e, como fonte, ora de notícias, ora de benesses,
Brasília, o Distrito Federal. Todos sabem que a mídia, nas outras
capitais, está em mãos de oligarquias (como é o caso da Bahia,
de Alagoas ou Maranhão) ou de empreendimentos tradicionalmente
associados aos governos locais (no Paraná, por exemplo), eventualmente
indignados quando as verbas estaduais não pingam em suas boquinhas
sequiosas (no Rio Grande do Sul).
Parece que o Brasil acaba aí. O que resta
é público residual – e o paulista ou carioca imagina vilas nordestinas
onde o aposentado que recebe um ou meio salário mínimo é o grande
freguês das lojas; ou talvez o recanto de montanha ou praia em
que passou ano retrasado as férias, entre piscinas, restaurantes
falsamente alemães (ou italianos, poloneses, chineses...), quartos
de hotel onde se restaura a libido e “o verde” que, segundo a
filosofia natureba, elimina o estresse e limpa os pulmões da habitual
mistura de CO2, ozônio e cheiros não identificados.
Leandro Ramires Comassetto é um cidadão
do Brasil menos conhecido. Não mora em florestas, areais ou chapadões.
É jornalista, professor, cidadão urbano, convive com cidades de
porte médio, modernas e com pessoas de padrão de vida confortável
numa das regiões mais ricas do país, que todo cidadão homenageia
quando almoça frango, peru, salsicha ou descongela a pizza. O
Oeste de Santa Catarina e a região do Contestado (onde, há menos
de um século, colonos rebelaram-se na revolta dos Mückers, tão
parecida com a guerra de Canudos) são, hoje, territórios onde
a prosperidade só não é maior porque a exportação de produtos
agro-industriais enfrenta o subsídio aos concorrentes norte-americanos,
os juros internos, no Brasil, são boçalmente altos e o poder aquisitivo
do povo caminha em curva decrescente.
O que motiva a dissertação de Leandro é
a pobreza estilística, a falta de qualidade dos jornais da região,
em contraste com a tecnologia de ponta que antecipa, com precisão
de cinco gramas para mais ou menos, quanto pesará um frango ao
fim de x meses. Mais do que isso: a necessidade de demonstrar
a repórteres e redatores improvisados, sem nenhuma escolaridade
específica, que a difusão de informações no mundo contemporâneo
exige padrões técnicos que não decorrem da moda, como a escolha
de estilos de vestuário, mas se apóiam em usos tradicionais que,
por sua vez, correspondem a mecanismos da cognição humana.
Desde sempre, no contato entre pessoas,
o evento singular relevante precede antecedentes, circunstâncias
e detalhes. Se uma pessoa vê (ou vê, ou sente, ou cheira) algo
importante ou inusitado (digamos, uma conversa telefônica do ministro
da economia com Fernandinho Beira Mar), informará o acontecimento
a um interlocutor contando exatamente isso: “Eu ouvi uma conversa
pelo telefone do Ministro Pangloss com Fernandinho Beira Mar”.
É improvável, inadequado, espantoso, atrairá para o falante a
pecha eterna de ser chato, um relato assim: “Eu estava ao telefone
falando com a Mariazinha sobre o bolo que a gente pretende fazer
para o aniversário do João – aquele todo confeitado com açúcar
colorido –, quando uma linha cruzada atrapalhou a conversa. Mas
era um papo tão interessante que ficamos calados, só ouvindo o
que diziam. Falavam sobre grandes quantias, viagens, assassinatos,
uma porção de coisas. Você não imagina qual a nossa surpresa quando
percebemos quem eram os interlocutores. Tratava-se, ora veja,
do Ministro Pangloss e daquele traficante que está preso não sem
bem onde, qual é o nome? Ah, sim, o Fernandinho Beira Mar...”
Pois bem. Se pegarmos a frase “eu ouvi uma
conversa...” . suprimirmos o contexto (o “eu”), acrescentarmos
as marcas necessárias de tempo, espaço e modo, teremos, no formato
normal da mensagem, transposta para um veículo público, algo como
“Uma conversa entre o Ministro Pangloss e Fernandinho Beira Mar
foi interceptada ontem ao meio-dia numa linha cruzada em Goiânia,
Goiás” – que é, afinal, um lead. Trata-se de uma forma
que não decorre nem do épico, da lírica ou da dialética, mas de
algo bem mais primário: o aviso de perigo diante da fera, o balbucio
do soldado que correu de Maratona a Atenas, o grito “terra à vista”
do vigia no alto do grande mastro da frota cabralina, em frente
à costa baiana.
A motivação de Leandro o conduziu a um levantamento
singular dos princípios teóricos que subjazem a estrutura da notícia.
Partindo dos conceitos de macroestrutura e superestrutura, tal
como propostos por Van Dijk e Kintsch, ele busca
– e consegue – dar conta do conteúdo semântico global e da forma
como ele se ajusta ao texto, com ênfase nos títulos e leads,
considerados categorias essenciais do esquema da notícia.
O princípio que rege a abordagem cognitiva
do compreensão do discurso é a natureza ativa da recepção: o fato
de que a percepção é processo complexo, que inclui a avaliação
das intenções do emissor, dos contextos do enunciado e da enunciação,
o recurso aos conhecimentos não apenas da memória léxica, mas,
principalmente, da memória enciclopédica, de modo a construir
uma interpretação da mensagem, pessoal e, de certa forma, única.
Mal entram em contato com o primeiro
frame de uma notícia, os receptores (leitores, ouvintes,
espectadores) tentam construir um modelo de situação, ativando
a lembrança de modelos anteriores sobre situações similares. A
memória episódica e a memória semântica, ambas incluídas na memória
de longo prazo, contribuem, assim, todo o tempo, para o entendimento
do discurso.
A estimativa sobre o conteúdo da informação
inclui alguma previsão da superestrutura, ou seja, da estrutura
global que caracteriza o tipo de texto, segundo a qual se direcionam
os esquemas semânticos – lê-se um texto científico diferentemente
de uma peça de teatro. A prioridade do receptor é derivar o quanto
antes um sentido global para o enunciado – e ele o faz a partir
da microestrutura de proposições que vão sendo processadas na
memória de curto prazo, de modo que, afinal, não se lembrará das
palavras ou frases, mas será certamente capaz de reconstruir,
a partir de sua visão peculiar, o conteúdo do discurso percebido.
A macroestrutura é a informação semântica
que fornece unidade ao discurso. As coerências microestruturais
podem ser preservadas em bestialógicos. A macroestrutura, não;
resulta da conexão das proposições em torno de uma questão central
ou tópico. É o que acontece no poema de Mário de Andrade, citado
por Comasseto, em que as partes aparentemente não se reportam
umas às outras, mas a consistência é preservada:
Num automóvel de luxo,
Sessenta vezes por mês
Bem barbeado, bom charuto,
Rei dos reis....
Diferente de outros gêneros de discurso,
que se reportam a situações rituais específicas (a exaltação de
sentimentos, o convencimento de outros, a narrativa dramática
etc.), a notícia apresenta lógica própria, baseada na relevância,
tema exaustivamente estudado por Sperber e Wilson. Em suma,
a organização estrutural da notícia e os princípios
que a norteiam não autônomos nem arbitrários. Na verdade, são
condicionados por várias imposições de produção e uso, em respeito
a condições sociais, culturais e cognitivas. Por um lado, os jornalistas
deles se utilizam para facilitar a produção das notícias. Por
outro, os leitores aprenderam, pelo hábito de leitura de jornais,
a encontrar no esquema os sinais de que precisam para uma cognição
rápida e eficiente do relato.
Quem não acredita nisso passará a acreditar
ao ler a dissertação de Comasseto, particularmente a aplicação
crítica dos princípios cognitivos a textos que ignoram por inteiro
a técnica jornalística, em alguns dos 50 jornais de 50 cidades
da área de 34.600 km2 da região do Contestado. Não
se trata de algo que mereça ser discutido: é uma constatação de
que se deve partir para qualquer estudo do gênero notícia – primeiro,
mas não único, dentre os gêneros jornalísticos.