Vozes em cena: as disputas simbólicas de sentido no espaço público mediatizado.
                                                    Regina Lúcia Alves de Lima (UFPA)
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RESUMO

Partindo do pressuposto de que a função de mediação assumida pelo campo dos media e seus dispositivos de comunicação na modernidade é, nos dias atuais, a principal fonte de tensão entre eles e os demais campos sociais – porque ao mesmo tempo em que aproxima os media desses campos é responsável, ainda, pelas relações de conflitos entre eles -, este trabalho tem como meta localizar, nas práticas discursivas dos media, marcas do embate social entre esses campos, a fim de perceber como se estabelecem as relações de força e poder circulante na sociedade. Sobretudo, as armas simbólicas acionadas pelos media, em particular as revistas com publicação semanal  VEJA e ISTO É, para participar desta disputa, tendo em vista garantir a prevalência de sua visão, sistemas de nomeação e formas de ação.

Palavras- chave: tensão, disputas e armas simbólicas

 

Cena de abertura

Neste ensaio buscaremos revelar, através de análise das práticas discursivas dos media, que estes - embora se pretendam narradores autorizados do real, como narradores que trazem os fatos sem neles interferir e cujo produto é espelho da verdade -, não ficam de fora dessa disputa. Pelo contrário, participam dela, propondo sentido e desenvolvendo, inclusive, um aparato estratégico, tendo em vista o conhecimento e o reconhecimento para impor sua visão de realidade sobre os problemas sociais, conforme seus interesses. Nosso objetivo é localizar marcas no discurso dos media, mais precisamente no noticiário publicado nas revistas semanais VEJA e ISTO É, sobre o caso de escândalo de corrupção no Orçamento da União que revelem as relações de poder estabelecidas nas práticas discursivas dos media e, principalmente, as modalidades de operações discursivas acionadas por eles para se posicionarem no interior dessas relações de disputas pelo poder de obter o ganho simbólico de falar dos problemas sociais. Como essas marcas nem sempre estão visíveis na superfície textual, mas muitas vezes implícitas, o conceito de intertextualidade será o eixo condutor desta análise.

          A análise levará em conta o conjunto de matérias significantes articuladas pelas duas revistas para construir enunciação específica, ressaltando, à medida da exigência de cada estratégia, os gêneros jornalísticos, como o editorial, as cartas de leitores, as reportagens e seus respectivos títulos. A decisão de percorrer todo o universo discursivo de cada uma das revistas se dá em função de termos uma visão global do conjunto de estratégias que cada uma articula para disputar sentido interna e externamente. O aspecto externo diz respeito às disputas que os media travam com os outros campos sociais pelo exercício de poder e de autoridade para falar dos fatos sociais. Já do ponto de vista interno, referimo-nos à competição travada entre as revistas para conquistar o leitor. Mas antes de identificarmos as armas simbólicas dos media, seria interessante, primeiro, mostrar algumas regras que orientam o  dizer jornalístico.

Em cena, as especificidades simbólicas do dizer jornalístico.

Para ser reconhecido como lugar de mediação com a tarefa de dar  visibilidade, os media necessitam, além de tornar os fatos públicos (visíveis) de forma transparente, obliterar toda e qualquer forma de intervenção. Os media colocam assim em ação uma regra muito específica: objetividade. A objetividade é  uma das regras básicas do jornalismo e consiste na construção de sua narrativa na terceira pessoa do plural para caracterizar um discurso com objetividade. A objetividade, portanto, é o que se pode dizer de uma das especificidades que orientam o dizer jornalístico, segundo o qual escrever com objetividade [1] é a prova de credibilidade do discurso, por estar descrevendo o fato tal qual aconteceu. 

        Mas não basta apenas aos media tornarem visível, relatar com transparência os fatos relativos aos outros campos sociais e narrar em terceira pessoa; é preciso, sobretudo, que eles se apresentem como um lugar neutro. Uma espécie de lugar onde ele, emissor, não toma partido, mas apenas cede seu espaço para que outros atores sociais falem. Como uma espécie de lugar anônimo, que pertence ao mesmo tempo a todos e a ninguém. A neutralidade, portanto, é outra especificidade que tem papel de destaque no dizer jornalístico.

Dentre as operações que os media realizam para construir a enunciação de forma neutra, a recorrência a vozes é uma das mais importantes. Ao trazer para o seio da enunciação falas de outros atores sociais, os media pretendem camuflar sua opinião, apresentando-se como o lugar de falas alheias. Um dos recursos acionados pelos media para parecer neutro é a utilização das aspas, que são instrumentos, sinalizações no texto, que garantem a credibilidade ao discurso mediático. As aspas servem para garantir que o dito não seja dito por ele, mas por outro ator socialmente legitimado.

Outra especificidade que entra em cena para compor o ritual discursivo dos media é a noção de atualidade. Ou seja, os media têm o critério temporal como sua principal forma de seleção de dados, já que não há notícias que não se articule com o tempo recente. A temporalidade dos media envolve o que foi há pouco, o que é agora e o que  será  em breve.  Normalmente essa atualidade apresenta-se na forma dos advérbios de tempo (ontem, hoje, amanhã), que marcam o aqui e agora do acontecimento. Falar da construção dessa noção não significa dizer que os meios de comunicação não recorram a fatos anteriores para  narrar um acontecimento atual. As revistas com publicação semanal, por não terem o compromisso da narração dos fatos diários, são um bom indicativo de construção do presente pela reconstituição de fatos anteriores.

A neutralidade, a objetividade e a atualidade constituem, então, algumas das principais regras que ancoram o fazer discursivo dos media. São essas regras e a incorporação de regras advindas de outras fronteiras discursivas, cujas movimentações e combinações vão resultar na produção de sentido, que veremos a partir de agora.

Em cena, as armas simbólicas dos media

Interessa-nos nesta cena tentar perceber o trabalho de investimento de sentido segundo o qual cada uma das revistas lança mão das mais diferentes armas simbólicas [2]   na luta pela prevalência de seu ponto de vista. Como o trabalho de investimento de sentido consiste num processo de modalizar, organizar e referenciar, três estratégias discursivas (hierarquização, referenciação e modalização) entram em cena ora isoladamente, ora simultaneamente, para produzir efeitos de sentidos, a partir de duas operações que constroem as modalidades de dizer dos media: agendamento e auto-referenciação. A escolha por essas duas operações não significa que não existam outras, da mesma que a divisão em operações não significa que estas não se articulem para que os media produzam efeitos de sentido. A divisão, em verdade, serve mais para facilitar a análise e identificar as estratégias.

Agendamento

Se partirmos do pressuposto que os media são hoje dispositivos que dirigem socialmente a publicização dos inúmeros campos sociais, cabe então a eles o papel de agendar os fatos sociais de acordo com o que classificam de atual. Pela operação de agendamento, os media escolhem os fatos sociais, transformando em notícias o que até então não dispunha desse status. Agendar a informação é, assim, uma operação que encarna a essência da teoria do agenda-setting [3] , desenvolvida pela sociologia da comunicação, que compreende que os media, se não dizem como é que devemos pensar, indicam-nos, pelo menos, sobre o que devemos pensar. A formulação clássica da teoria do agenda-setting, conceito criado por McCombs e Shaw, diz respeito à possibilidade de que a imprensa, na maior parte do tempo, pode não ter sucesso em dizer às pessoas o que fazer, mas é extremamente eficaz em dizer o que é necessário pensar. 

O ato de agendar é uma atividade rotineira dentro dos media, já que o fazer jornalístico, enquanto produto industrial, exige um planejamento do resultado final. Agendar é colocar na ordem do dia, é transformar em notícia fatos que até então não o eram. Agendar implica excluir ou incluir, considerar ou não, dar voz ou não, publicizar ou não, e, dependendo do modo como tudo isto se articula, os dispositivos de comunicação propõem efeitos de sentidos.  

O poder pela predição

O ato de agendar, de pré-determinar o que deve ou não ser tornado público, se traduz em duas armas simbólicas: a antecipação dos acontecimentos e a vigilância constante dos media sobre as demais instituições e sobre os dispositivos de comunicação que disputam a notícia. O agendamento é a operação que possibilita aos media o poder de predição e de vigilância, já que são eles que controlam a informação e, por conseguinte, conduzem o processo de construção das notícias. Ao trazer para a cena pública aquilo que estava oculto nas outras esferas sociais, os media não só predizem os acontecimentos, mas também convertem-se no próprio olhar vigilante que se subjetiva no olhar do cidadão, invertendo e domesticando a própria ordem vigilante do poder.

Antecipar e vigiar são duas armas que só se realizam na prática discursiva dos media porque eles assumem na modernidade a tarefa de dar visibilidade aos diferentes campos sociais. A visibilidade, como princípio legitimador dos media, é, assim, uma arma simbólica indireta de construção e produção do controle dos media sobre os demais campos sociais. Indireta, porque é uma arma dissimulada. É a vigilância indireta baseada no controle da informação, na supervisão e no monitoramento das atividades dos demais campos.

 Mas essa operação de agendamento não se restringe apenas quando os media confeccionam a pauta, decidindo o que deve ou não ser passível de se transformar em notícia. Ela se manifesta ainda no processo de cobertura, em que os veículos de comunicação privilegiam certas organizações ou núcleos da sociedade em detrimento de outras. Ela está presente também quando os jornalistas decidem a que fonte recorrer, já que esta escolha está relacionada à política editorial da empresa, fortemente atrelada às operações comerciais. A utilização da fonte repousa em grande parte nas vinculações publicitárias das empresas jornalísticas com as suas fontes financeiras (anunciantes). Ela se apresenta no copidesque no qual os media decidem sobre o que se divulga ou não. Só para ilustrar o que acabamos de dizer, trouxemos algumas capas das revistas VEJA e ISTO É, com o objetivo de mostrar que nenhuma matéria significante (nome da revista, manchete, subtítulo e fotografia) que compõe um gênero discurso (capa) está disposta de forma aleatória. Pelo contrário, a combinação dessas matérias significantes é que possibilita às revistas determinarem os níveis de importância das notícias e agendarem os fatos sobre os quais os receptores devem pensar.

Na primeira capa de VEJA, a revista, por exemplo, em vez de colocar um questionamento, como sugere a manchete, faz uma afirmação como recurso para reforçar seu poder de revelação dos acontecimentos. Ao afirmar Até onde pode ir a CPI, ao invés de questionar, a revista anuncia na capa que irá antecipar os rumos dos trabalhos da CPI. Tanto é verdade que o título da reportagem Até onde vai a CPI muda de tempo verbal, para caracterizar que ali estão expostos os limites da CPI.

A agenda de cada uma

 Nas capas, lugar onde as revistas fazem sua primeira oferta de sentido aos leitores, a operação de agendamento se manifesta no conjunto de combinações entre nome do dispositivo, fotografia, manchete e subtítulo que, associados, acabam por construir hierarquias, definindo níveis de importância das notícias, agendando o interesse do leitor e antecipando os acontecimentos. Das três capas em ISTO É e das sete em VEJA que remetem ao escândalo de corrupção no Orçamento da União, escolhemos para análise apenas duas capas de cada revista, devido à semelhança entre elas.

Na edição de 20 de outubro de 1993, as duas revistas trazem capas aparentemente semelhantes. As duas estampam a foto de José Carlos Alves algemado, ponto de partida das denúncias de corrupção. O que diferencia, no entanto, uma capa da outra é a construção discursiva a partir da relação da manchete com o subtítulo, que, combinados com o nome da revista e a fotografia, geram efeitos de sentidos diferenciados. Enquanto VEJA privilegia o adjetivo podre para qualificar a política como um campo corrompido e deteriorado, ISTO É concentra sua enunciação no verbo ameaçar para modalizar o acontecimento. Através do verbo, a revista adverte o Congresso para o perigo que a prisão de José Carlos pode representar para esfera política.

O mesmo acontece na edição do dia 27 de outubro, em que VEJA e ISTO É trazem novamente capas muito parecidas. Além da foto de João Alves, as duas revistas apresentam manchetes caracterizadas pela apropriação de expressões populares para referenciar o envolvimento do deputado João Alves no escândalo do Orçamento. Em ISTO É a proposição de sentido se dá a partir da associação do verbal com o não-verbal. Ao combinar a foto do deputado mexendo numa maleta com a manchete (Mãos na massa), a revista propõe um sentido caracterizando que o deputado de fato foi pego com as mãos na massa.

Diferentemente de ISTO É, a proposição de sentido em VEJA está na relação da manchete (Bola da vez) com o subtítulo. Na manchete, a revista recorre a uma expressão popular para dizer, remetendo ao jogo de sinuca, que o deputado é a bola da vez que vai cair. Já o subtítulo chama a atenção para a existência de outros parlamentares envolvidos no escândalo. Nesta relação da manchete com o subtítulo, a revista reforça seu poder de vigilância, ao antecipar que outros parlamentares poderão ser a bola da vez. Deixa subentendido com isso que ela está atenta e que poderá fornecer essa revelação.

Das capas, a operação de agendamento e, conseqüentemente, o poder de antecipação e de vigilância dos media vão migrando para o interior das revistas. A operação comparece no editorial e, principalmente, nos títulos das reportagens. Aqui, observamos um fato curioso. Do conjunto de 26 títulos localizados em VEJA, somente seis são construídos com o verbo, e dos 20 títulos em ISTO É, apenas quatro aparecem com o verbo. Uma situação completamente diferente do que acontece nas notícias de jornais, em que a construção do título com o verbo preferencialmente no presente é uma das recomendações básicas no jornalismo, porque sugere o fato acontecido, e o veículo tenta a (re)presentação do tempo real. A supressão do verbo nos títulos das reportagens, talvez esteja relacionada ao fato de as revistas não terem esse compromisso com o acontecimento do dia, como acontece nos jornais. Além disso, essa ausência do verbo pode sugerir um processo de fragmentação do enunciado, como estratégia de levar o leitor a inserir-se nos interstícios da frase de modo a completar o sentido.

Dentre estes títulos, localizamos alguns exemplos significativos da operação de agendamento.

1)A terra treme: a CPI do orçamento abre uma crise sem precedentes: longa e difícil, irá colocar o Congresso à prova (VEJA – 27/10/93).

2)Um mês de limpeza: A situação de cada um dos acusados de corrupção e o que pode acontecer com eles no final CPI (VEJA – 24/11/93)

3) Desastre à vista: lenta e complicada, a cassação pode alcançar apenas oito deputados ou até nenhum (VEJA -1/12/93).

4) Propósitos para 1994: punir os culpados, reformar o Estado, avançar na mentalidade ética: três tarefas para o ano (VEJA -5/1/94).

5) O tempo é agora: A revisão constitucional é o grande momento da transformação do País. (VEJA/Editorial-19/01/94)

6) Os anões vão para a forca: CPI anuncia nomes dos parlamentares que desviaram verbas e prepara mudanças no sistema político (ISTO É -19/01/94).

7)Faxina, parte dois: cassados e inocentados devem agora enfrentar processos judiciais (ISTO É - 24/11/94)

Embora a maioria dos títulos seja marcada pela ausência da forma verbal, e as ações são relatadas,portanto sem o termo gramaticalmente destinado para isto- o verbo-, todos os enunciados remetem ao poder de predição exercido pelos media, seja através dos tempos verbais no futuro - discurso antecipatório em si-, seja por intermédio da idéia de um acontecimento iminente, caracterizando um discurso de ação. Há, no entanto, uma diferença entre a forma de predizer de uma e outra revista. Enquanto VEJA trabalha mais com a idéia de antecipação, ISTO É prefere  a noção de acontecimento iminente, do que a está em via de efetivação imediata.

Se observarmos os enunciados da revista VEJA numa ordem seqüencial, notaremos que estão associados ao passo que a revista procura agendar para os encaminhamentos da CPI. Num primeiro momento, a revista anuncia que A Terra Treme com a crise instaurada na CPI. Em seguida, promete Um mês de limpeza, expondo a situação de cada parlamentar envolvido no escândalo. Por último, a revista determina O tempo é agora para a revisão constitucional.

Em todos os enunciados, VEJA, ao filtrar, estruturar os fatos que dizem respeito ao escândalo, fornece perspectiva, modela e define os rumos do acontecimento. Nos enunciados um, dois e três, por exemplo, a revista revela, prediz e desqualifica. Isso fica bem claro no título Desastre à vista e subtítulo do enunciado três. No título a revista prenuncia algo (um desastre) que está próximo de acontecer, caracterizando-se como discurso antecipatório. No subtítulo, completa sua predição ao dizer que a CPI pode alcançar apenas oito deputados, comparados aos 23 parlamentares, dois ministros, quatro ex-ministros e quatro empreiteiras acusados inicialmente por José Carlos Alves. Mas a revista não só profetiza, ela também desqualifica a CPI, usando adjetivos como lenta e complicada para referenciar a atuação da CPI. Aqui temos um clássico exemplo de negação explícita do discurso concorrente.  Para completar a desqualificação, o texto, de 12 páginas, abre com uma referência irônica: A CPI do orçamento pode terminar como a comissão Casseta & Planeta de Investigação, do programa de humor que a Rede Globo exibe nesta terça-feira: numa grande farsa.

Numa posição completamente oposta a VEJA, ISTO É vai privilegiar a idéia de um acontecimento iminente. Por isso ela é mais incisiva: Os anões vão para forca: CPI anuncia nomes dos parlamentares que desviaram verbas e prepara mudanças no sistema político; Faxina, parte dois: cassados e inocentados devem agora enfrentar processos judiciais (ISTO É - 24/11/94).    

De um modo geral, as duas revistas, na posição do “bom dizer”, interferem na esfera do discurso público, transformando, conseqüentemente, os regimes de visibilidade numa arma indireta de construção e produção do controle social da política. Ao se colocar na posição do “bom dizer”, os media assumem o lugar e o poder de ordenar, de organizar, segundo critérios definidos, o mundo “caótico da política”, deslocando o papel do discurso não apenas de interlocução, mas de construção do agendamento da própria política, produzindo comentário, avaliando e induzindo a opinião dos leitores.

Auto-referenciação

A rigor, todo discurso dos media é conduzido de forma a mostrar-se ausente do ato de enunciação como prova de que seu dizer é neutro, de que apenas reproduz falas alheias. Mas, apesar de tentar apagar toda e qualquer marca que possa revelar sua presença, os media enunciam sua posição no discurso através de determinadas marcas formais. Quer dizer, participam da cena discursiva e, na maioria das vezes, fazem referências constantes ao seu poder de presentificação no desenrolar dos acontecimentos. É essa a forma com que procuram afirmar sua presença e seu poder de estar presente nos fatos sociais que estamos denominando de operação de auto-referenciação. Auto-referenciação é, portanto, a operação que melhor revela como cada dispositivo de comunicação fala de si e conta como esteve presente ao fato no momento em que ele ocorreu ou então afirma que aquele fato só aconteceu porque teve a sua interferência. É a operação reveladora da presença dos media no seio do enunciado, seja através da falta de nitidez sobre sua identidade, seja através da participação na cena discursiva.

 a) nos editorias

Embora não se trate de uma notícia assinada, o editorial é reconhecidamente o espaço em que os dispositivos de comunicação assumem abertamente sua posição. É o lugar por excelência onde os media marcam sua posição na enunciação, constituindo-se, portanto, num dos espaços de auto-referenciação dos veículos de comunicação. No editorial, o enunciador se revela na enunciação através da narrativa em primeira pessoa, rompendo com a gramática na narrativa impessoal proposta na construção das notícias. Ali, os media não mascaram a subjetividade, pelo contrário, reconhecem-na, e fazem dela uma aliada para ofertar ao leitor uma visão mais emotiva, uma vez que os fatos narrados em primeira pessoa adquirem maior carga dramática.

Neste editorial publicado na edição do dia 27 de outubro de 1993 em VEJA, a revista faz duas auto-referências: na primeira associa a coincidência do lançamento de sua edição comemorativa de 25 anos com o momento político por que passa o país; a segunda, mais impactante, é quando a edição anterior é posta como deflagradora da crise política: “...se inaugura uma nova crise da política. A CPI do Orçamento formada na semana passada  com base na última reportagem de capa de Veja, é o epicentro de uma crise grave  ...”.

                                                                                                                                                                                           O mesmo pode-se dizer do editorial publicado na mesma semana em ISTO É; a revista trata o acontecimento-escândalo de forma marcadamente crítica,  levantando a questão de que a cultura nacional de certa forma contribui com o status quo da corrupção, dado que funciona como argumento para ilustrar o aparecimento de João Alves em Londres. A revista usa a oportunidade para fazer uma análise crítica da nossa legislação, tudo conspirando no sentido de desqualificação [4] do papel da classe política: Num país onde congressistas de uma CPI como a da corrupção interrogam um réu confesso chamando-o de vossa excelência nada é impossível.

A grande diferença entre um editorial e outro consiste em que na revista VEJA todo processo de construção discursiva está centrado na capacidade que a revista tem de se atribuir à responsabilidade pela geração da crise na política. Daí duas auto-referências bem explícitas. ISTO É não faz uma auto-referenciação tão explícita, mas já deixa traçada neste, que é o primeiro editorial da revista sobre o assunto,a trilha que percorrerá ao longo da CPI, desqualificando e generalizando a classe política e- utilizando um estilo textual agressivo, repleto de ironias umas mais sutis:  Paulo César, muito britânico..”-, outras, nem tanto: “... Alguns brasileiros mais afoitos, com raciocínio de feiras livres...”. Neste editorial a revista recorre à crítica e à ironia como maneiras explícitas de negar abertamente a legitimidade do outro discurso, bem como marcar sua posição em relação aos encaminhamentos da CPI.

VEJA, no editorial do dia 24 de novembro de 1993, ao contrário de ISTO É, continua apostando nos trabalhos da CPI: “Cada vez com maior nitidez, fica claro que um processo profundo e devastador  está em andamento... “ A revista usa seu espaço editorial para reafirmar categoricamente o papel da mídia no processo, ressaltando a necessidade vital para o sistema democrático da informação chegar à opinião pública e coloca: “o elemento decisivo na formação da opinião  é a imprensa escrita. É ela quem tem ido mais fundo na apuração das denúncias,...”.

Além de marcar sua presença, a revista reafirma seu poder de vigilância e não esconde o poder que tal função acarreta: “Ao poder, imenso, da imprensa, deve exigir uma dose igual, ou maior, de responsabilidade..”.Dito isto, o emissor faz sua autopromoção ressaltando que o patrimônio de um veículo de informação é sua credibilidade, e lembra sua atuação em CPIs: “Veja, cujas reportagens e entrevistas provocaram diretamente tanto a CPI de PC-Collor como o do Orçamento.

Na mesma semana, ISTO É publica também este editorial. Nele, a revista é puro veneno contra os congressistas. Assim como em VEJA, o papel dos media é posto em questão, mas o direcionamento opinativo é outro, com dura crítica à atuação da imprensa: "A que se levar em conta  apenas as principais manchetes de jornais, capas de revistas e o noticiário de abertura dos telejornais, o País está desde 1992 paralisado por um processo de impeachment presidencial seguido de uma CPI que devassa o Congresso. Isto é apenas parte da realidade”.

 Este exemplo revela que a revista desqualifica o discurso dos outros dispositivos de comunicação ao mesmo tempo em que auto-referencia-se como o lugar de revelação dos fatos. Temos aqui um caso típico de disputa interna entre os dispositivos de comunicação que pertencem ao mesmo universo discursivo. Ao inserir em vários trechos o advérbio apenas a revista ressalta quais são os dispositivos de comunicação credenciados para falar sobre o assunto, bem como faz ressalva ao trabalho da CPI como responsável pelas tentativas de moralização no país.           

b)Nas reportagens

Ao contrário do que normalmente dizem os manuais de redação, os media não só se auto-referenciam nos editoriais, lugar em que reconhecidamente se assumem como sujeitos da enunciação. Fazem-nos ainda nas reportagens, justamente onde eles sugerem não participar da cena discursiva, propondo-se como lugar neutro e imparcial. Em algumas reportagens publicadas em ambas as revistas, localizamos algumas marcas que apontam para a forma como as revistas imprimem sua presença, de maneira diferenciada. Estas marcas podem ser identificadas por expressões como: em entrevista à revista ou então em entrevista exclusiva. São expressões através das quais os media reforçam, diante do público, seu lugar de instância mediadora.

Na edição do dia 3 de novembro de 1993, cujo título é Ônus da prova, ISTO É mostra claramente como o enunciador participa da cena discursiva e, principalmente, que não abre mão de ressaltar seu lugar de emissor onipresente, que traduz, revela, mas nunca se ausenta. No trecho que diz: e a primeira resultante deste sentimento é o festival de denúncias e insinuações que se espalhou pelo país e encontrou abrigo e amparo na imprensa, a revista mostra claramente como o enunciador está presente. Ao dizer isso, ela não somente reafirma o papel de onipresença dos media quando procura mostrar que a imprensa tem um papel decisivo na investigação sobre o caso em pauta, mas se legitima como o veículo que revelou o fato em questão.

Na mesma semana, VEJA também publica uma reportagem com o título Lavanderia da sorte: a suspeita de uso das loterias para lavar dinheiro. No texto, assim como o título sugere, a revista aborda com ironia a argumentação de defesa de João Alves de que teria enriquecido ganhando na loteria. João Alves é desqualificado explicitamente: “a versão apresentada por ele para justificar tantos prêmios não merece exame. João Alves explicou com a cara mais cândida do mundo que é apenas um homem de sorte...”. VEJA traz para si discursos técnicos, como o do matemático Oswald de Souza e do “apostador profissional” Munis Miss, que havia denunciado ao senador José Paulo Bisol suas suspeitas de lavagem de dinheiro em lotérica, como instrumentos para desqualificar o discurso.

Na matéria publicada na revista ISTO É do dia 10 de novembro de 1993, percebem-se nitidamente marcas de auto-referenciação  no trecho que diz: “nos últimos dias, ISTO É foi até Miami no rastro do jatinho de João Alves e visitou as bases eleitorais de alguns dos principais envolvidos com a intenção de responder às seguintes perguntas: onde, afinal, foi parar o dinheiro do orçamento ( interrogação) O fruto dos nossos impostos foi empregado como deveria ou acabou engordando o bolso de alguns gananciosos (interrogação). O trabalho de reportagem ISTO É infelizmente serve de subsídios aos pessimistas.  

            Neste exemplo, a revista referencia-se ao marcar sua posição enunciativa através, inclusive, do nome da revista em relevo. Ao usar esse recurso, a revista mostra que não só cuida de referenciar o papel do discurso jornalístico como um lugar de observação e de acompanhamento do que se passa no cenário político, mas também de ressaltar o papel ativo que ela, de maneira geral, empenhou no processo de revelação desses acontecimentos. Os enunciados dizem, claramente, que sem a intervenção dos media não teríamos o processo e sua conseqüente revelação. Neste exemplo, o emissor tenta convencer o leitor de sua responsabilidade na eclosão do acontecimento.

Publicada também na revista ISTO É, no dia 7 de março de 2001, na notícia cujo título era: Fisgado pela Voz, a revista se auto-referencia ao dizer no meio da enunciação que o fato aconteceu tal e qual havia revelado em sua última edição. Este trecho, além de servir de evidência da intervenção da revista no desenrolar do acontecimento, faz cair por terra a suposta neutralidade reivindicada pelos meios de comunicação, e é revelador ainda do poder que os media possuem ao ratificar-se como espaço de vigilância, ou seja, como campo que está atento a qualquer deslize na política.

 De acordo com estes exemplos, observamos que as duas revistas usam a operação de auto-referenciação nas reportagens, com o intuito de mostrar seu poder de acompanhar os acontecimentos. É bem verdade que VEJA, ao longo da sua cobertura, empregou a operação com muito mais freqüência que ISTO É. Sem contar que VEJA acionou a operação com a finalidade de mostrar-se não só como lugar de revelação dos acontecimentos, mas, sobretudo, como a responsável pelo desencadeamento das informações. É como se a revista, através da operação de auto-refrenciação, estivesse a nos dizer que sem sua participação estes eventos jamais chegariam ao conhecimento público. ISTO É, no entanto, desenvolveu a operação com o objetivo de mostrar-se como um veículo que está sempre presente nos acontecimentos.

c) Na seção de cartas de leitores

Os media também se auto-referenciam na seção de cartas de leitores, lugar, em tese, apenas de fala dos leitores. Através do material analisado, foi possível identificar como as revistas se auto-referenciam no gênero discursivo carta de leitor. Na seção de cartas publicada no dia 27 de outubro de 1993 na revista VEJA, retiramos alguns trechos que indicam a maneira que a revista encontra para ratificar seu papel de reveladora dos acontecimentos: “... a imprevisibilidade do escândalo detonado a partir da reportagem de capa de Veja da semana passada”, “ No depoimento ZC confirmou tudo o quanto havia denunciado a Veja. Confirmou a sua maneira...”, “ há mais de dois anos a imprensa vem publicando reportagens estarrecedoras sobre a comissão de Orçamento...”. 

Na edição do dia 3 de novembro de 1993, o escândalo do orçamento figura na seção de cartas de leitores [5] da revista ISTO É. Das quatro cartas publicadas que tratam do assunto, duas reportam-se à matéria veiculada na edição anterior. Ao escolher cartas que façam referências às matérias já mostradas pelas revistas, o veículo se auto-referencia através da fala do leitor. Esta marca, é bem verdade, não é tão evidente quanto às deixadas no editorial e em algumas notícias, como notamos anteriormente. Mas são relevantes porque apontam para a forma de imprimir sua presença, num espaço tido como do leitor, em que, em tese, a revista não deveria interferir.O mais curioso neste caso é que, mesmo publicando cartas com assinatura do leitor, a revista consegue legitimar seu dizer, auto-referenciando. Como ela se legitima? Quando seleciona uma dentre as inúmeras cartas enviadas à redação, quando titula, quando corta trechos, quando, enfim, editora as cartas de acordo com seus protocolos discursivos.

Em VEJA, na edição também do dia 3 de novembro de 1993, a situação não é diferente, já que encontramos também cartas que utilizam a revista como referência. Esta dá destaque, entre as cartas selecionadas, àquela que traz mais explicitamente a função de vigilância da imprensa, expressa num eloqüente elogio à edição de VEJA: “lendo as várias reportagens desta edição de Veja, convenci-me de que a imprensa é o quarto poder da República e, como escudo da democracia, o maior de todos.”               

Através de algumas marcas deixadas no texto pelo enunciador, foi possível perceber como as duas revistas lançam mão da operação de auto-referenciação na seção de cartas de leitores. ISTO É, diferente de VEJA, foi a que menos apresentou marcas explícitas, com exceção das edições dos dias 24 de novembro e 12 de janeiro, em que aparecem duas cartas em ISTO É  fazendo referência à retrospectiva da última edição e uma sobre a CPI.

Considerações finais

Este ensaio procurou mostrar, por intermédio da análise das práticas discursivas dos media, que os dispositivos de comunicação, ao se apresentarem como o lugar de visibilidade das vozes que se encontram desorganizadas no tecido social, não são, como se pretende, apenas um lugar de visbilidade e muito menos de encontro casual destas vozes, mas funcionam como instâncias que ditam as regras e sancionam o dizer e o fazer dos atores sociais, uma vez que cabe a eles o papel de determinar quem pode ou não participar da cena discursiva e a quem é permitido dizer algo. Ao monitorar essas vozes, os media exercem uma forma de poder no desenrolar dos acontecimentos sociais. A bem da verdade, ao trazerem essas vozes para participar da cena discursiva, buscam mascarar a subjetividade do processo de enunciação, com vistas a legitimar seu próprio discurso. Por isso, seu discurso é sempre a marca da voz do terceiro, do outro que é construído discursivamente como ator social. Sua enunciação demonstra ainda que ele é um discurso heterogêneo. Mas deixa ver que tal discurso não se contenta somente em organizar as vozes nesse espaço de visibilidade ofertado às outras vozes sociais, ao contrário, ele participa da cena discursiva, seja de forma explícita ou implícita, se posiciona, interfere, usando como referentes essas vozes que lhe garantem resguardar regras específicas de sua simbólica.

No caso das revistas analisadas, cada uma, dentro das particularidades inerentes ao processo de produção discursivo, acionou diferentes armas simbólicas para ordenar o mundo da esfera política, apontando caminhos e destinos dos atores sociais que fazem parte dessa esfera social. VEJA, por exemplo, em toda sua cobertura procurou construir um discurso de credibilidade no Congresso Nacional e fé nas possibilidades transformadoras que uma investigação do porte da CPI do Orçamento pode trazer para o futuro da democracia. ISTO É, ao contrário, procurou conduzir toda a sua cobertura com o intuito de mostrar que a CPI atrapalharia o processo de reforma constitucional. Para tanto não economizou esforços na desqualificação da classe política.

VEJA não desqualifica explicitamente os parlamentares, evitando críticas específicas, tratando-os com generalidade e apostando no futuro do Congresso Nacional e da democracia que depende dele para lograr sucesso. Ao assumir tal postura, constrói uma imagem de um emissor ausente, que procura não participar da cena discursiva. ISTO É, por seu turno, revela-se como um emissor envolvido no evento e suas construções discursivas demonstram que critica explicitamente a CPI. A revista ironiza, faz duras críticas e mostra-se a favor da reforma constitucional, que defendeu desde o início da cobertura. 

Referências bibliográficas

AUTHIER-REVUZ, Jackeline. Heterogeneidade(s) enunciativa(s)I. Cadernos de Estudos de Lingüística. Campina,UNICAM/IEL,p.25-42,jul/dez.1990.

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Diefel, 1989.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

PINTO, Milton José. As marcas lingüísticas da enunciação: esboço de uma gramática enunciativa do português. Rio de Janeiro: Numem Ed, 1994.

RODRIGUES, Adriano. Estratégias de Comunicação.Lisboa: Editorial Presença,1990.

VERON, Eliseo. L’analyse du contrat de lecture:une nouvelle methode pour lês etudes de positionament dês support press. Medias-Experiences, Recherches Actuelles, Applications, IREP, Juillet, 1985.

WOLF, Mauro. Teoria da comunicação. Lisboa: Presença, 1987.

 

 

 

1)Sexo, Drogas e corrupção (20/10/93).

2          Cortando na carne (27/10/93)

3          Ali-Babá e companhia (27/10/93)

4          Uma morte mal explicada (27/10/93)

5          PC e Alves se encontram (27/10/93)

6          Costura rápida (10/11/93)

7          Até tu, Ibsen (17/11/93).

8          Conversa de anão (24/11/93)

9          Pelos cabelos do João (24/11/93)

10      Vizinhos suspeitos (8/12/93)

11      Nova empreitada (8/12/93)

12      A Dupla vida de Odebrecht (8/12/93)

13      Os Intocáveis (8/12/93)

14      Azeitona na Pizza (15/12/93)

15      Rotina de escândalos (29/12/93)

16      Os anões vão para forca (19/01/94)

17      Fantasmas do cerrado (19/01/94)

18      Palavra de capataz (22/01/94)

19      CPI do orçamento: a história e os resultados(26/01/94).

20      Mãos limpas à brasileira (26/01/94)

 

 

 

 



[1] O mito da objetividade, das notícias como espelho do real, surge nos anos 20 e 30 nos Estados Unidos, quando a objetividade se configura como um método contra a reconhecida impossibilidade de ser objetivo, comprovada pelo surgimento do trabalho de relações públicas e pela eficácia da propaganda na primeira guerra mundial.

[2] Armas simbólicas que são configuradas em estratégias de que cada campo lança mão pelo conhecimento e reconhecimento para impor sua visão de realidade sobre os problemas sociais conforme seus interesses.

[3]   Para maior aprofundamento sobre agenda-setting, consultar WOLF, Mauro.Teorias da comunicação.Lisboa: Presença, 1987, especialmente o capítulo que trata dos Efeitos a longo prazo.

[4] Desqualificar consiste na forma que o discurso dos media tem de negar a legitimidade de outros discursos que disputam o mesmo espaço discursivo, seja desqualificando ou mesmo tentando subordinálo deste modo ao discurso do emissor. A desqualificação pode ser feita explicitamente, através da crítica, da ironia, da acusação, ou implicitamente, por meio do discurso relatado, do interdito, da exclusão, do silenciamento.

[5] A seção de cartas de leitores é um espaço ( seção) destinado pelos meios de comunicação às manifestações dos leitores. Em tese, a seção de cartas de leitores é um espaço em que o jornal não interfere, já que todo o material ali publicado é enviado pelos leitores. Mas o fato de selecionar as cartas segundo seus protocolos discursivos,  o jornal já demonstra  interferência no espaço do leitor. Por conta disso, o leitor que ali aparece na seção da revista, não é o leitor real, mas um leitor idealizado pela revista.